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O Exemplo de Comunhão dos Índios Munduruku na Amazônia

Há mais de 30 anos, o psicólogo Walter Andrade Parreira, 56 anos, e sua esposa Francisca, a Kika, viveram uma aventura que marcou suas vidas e influenciou até a forma como eles criaram as duas filhas (Juana e Júlia): ficaram dois meses numa aldeia, na Floresta Amazônica, com os índios Munduruku, conhecidos como cortadores de cabeça. Por respeito a esse povo, já que temia que sua privacidade pudesse ser invadida, só agora, Walter relata essa experiência no livro "Tawé - Nação Munduruku, Uma Aventura na Amazônia" (Universidade FUMEC/FCH - Decálogo Editora), que acaba de ser lançado. Tawé era o nome do cacique da tribo naquela época e que se tornou amigo do casal. O escritor Daniel Munduruku estimulou Walter a escrever o que viveu em 1975.

No livro, o autor conta a convivência com esses índios, que, apesar de terem na sua história o corte da cabeça de quem invadisse seu território, eram dotados de uma doçura e um respeito pelo outro quase infinitos. Walter recorda que as crianças recebiam um cuidado especial dos pais, que, sem sombra de dúvida, refletiria de forma positiva sobre seu caráter por toda sua vida. Também chamou a atenção de Walter e Kika o desprendimento e o espírito de partilha dos Munduruku. Saíam para pescar e caçar todos os dias e só traziam o que necessitavam para aquele dia. Tudo era colocado em um local único, para servir a todos. "Era uma partilha que me fez lembrar os primeiros cristãos, as primeiras comunidades. Eles viviam esse espírito de fraternidade e solidariedade que os cristãos buscam hoje, de forma gratuita, sem esforço", recorda, com emoção.

Eduardo Franco

Como foi a experiência junto com essa nação indígena?
Foi uma viagem, há mais de 30 anos, numa época em que estávamos saindo dos anos de 1960 e a juventude tinha duas formas de se inserir na sociedade e tentar transformá-la. Uma era pelo engajamento na luta contra a ditadura. Participei disso também. A outra seria por um movimento de contestação, de contracultura, e eu vivi esse momento também. Era relativamente comum, naquela época, a gente pôr o pé na estrada e sair viajando sem destino, para onde a estrada levasse. Eu saí, com minha esposa, para uma viagem dessa natureza. Tínhamos 24 anos e já havíamos feito outras viagens dessa forma. Não tínhamos filhos e havia um tempo grande pela frente que nos permitia fazer essa viagem de aventura, sem dinheiro. Fomos para o Norte do país e uma série de acontecimentos nos levou à cidade de Santarém (PA), onde ficamos conhecendo uma missionária que tinha vivido com uma tribo, os Munduruku. Viajando de gaiola pelo rio Amazonas com ela, durante três dias e três noites, ela nos contou muitas coisas ricas e interessantes desse povo.

Quem eram os Munduruku?
Eles eram conhecidos como os cortadores de cabeças. É a única tribo indígena brasileira que tinha isso na sua história. Era uma tribo guerreira, muito aguerrida e quado ela era hostilizada, alguém invadia suas terras, eles abatiam e cortavam a cabeça do inimigo. Esses índios desenvolveram um processo de mumificação dessas cabeças. esfacelavam os ossos do crânio, banhavam a cabeça numa substância e ela ficava mumificada. Tanto é que há várias dessas cabeças em musesu até hoje, preservadas. Eles dispunham essas cabeças em torno da aldeia, fincadas em paus, e aquilo virava um demônio para quem os invadisse. outras tribos não desenvolveram esse conhecimento e habilidade. Essas cabeças expostas funcionavam como um cinturão de proteção da aldeia.

Você e sua esposa não ficaram com medo de ir ao encontro desses indígenas que cortavam cabeças?
Não. Porque isso pertencia à história deles. Hoje, eles são cerca de 10 mil indígenas e uma certa parte mora perto da cidade. Essa parte que mora próximo da cidade teve seu território invadido, no ano passado, por 300 garimpeiros. Os índios prenderam três homens da Funai e, realmente, os ameaçaram. Mas essa questão de cortar cabeças pertence muito à história deles. E a missionária nos falou maravilhas sobre eles, como a fraternidade que existe entre as pessoas, a comunidade solidária que eles são e como vivem a vida em harmonia. Isso nos encantou. Não tivemos nenhum medo de estar com eles.

Como foi a acolhida que vocês tiveram quando chegaram à aldeia?
Foi muito difícil a chegada, porque dependíamos da autorização da madre superiora da congregação que mantinha a missão, em Santarém. Inicialmente, ela disse que não poderia dar essa autorização para ninguém, mas, depois de converar muito conosco, ficou de consultar o Conselho e voltar no dia seguinte. Voltamos, e ela autorizou a nossa ida. A partir daí, dependíamos de meio de transporte para lá. Havia dois: canoa, que demorava 30 dias para chegar lá na Missão, subindo o rio afluente do Tapajós, tirando a canoa do rio quando havia cachoeira e carregando-a nos ombros; ou então ir num avião da FAB, que percorria as missões de 40 em 40 dias. Se passasse um avião naqueles dias, a gente podia tentar conseguir carona nele. Aí passamos a depender da autorização do comandante da FAB. Nesse avião estava regressando para a aldeia o tuxaua Tawé. Tuxaua quer dizer cacique ou chefe da tribo. O índio desconhece o autoritarismo, mas reconhece a autoridade. Tawé era um homem de mais ou menos 55 anos de idade, de sabedoria e muita vida. Ele era muito reconhecido por sua liderança e representava esse povo indígena. Regressava de um encontro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Belém. O Cimi promovia, pela segunda vez, uma reunião de todos os caciques da Amazônia. Ele voltava nesse avião, que passaria por Santarém nesses dias. O avião pousou em Santarém e, se houvesse vaga, nós embarcaríamos. Ainda aconteceu alguma coisa porque tinha um grupo muito grande para embarcar, não nos coube. O avião foi levar um pessoal em outra cidade e deixou o Tawé em Santarém. A irmão pediu que ficássemos fazendo companhia a ele. Era a segunda vez qie ele saía da tribo e estava muito constrangido fora de seu ambiente. Ali começamos uma certa amaizade com ele. Depois, o avião retornou e conseguimos lugar para seguir para a missão.

Como era a área da missão?
Lá viviam 300 índios. Ficamos na missão, durante alguns dias, sempre passeando, conhecendo a aldeia, convivendo com os índios, os curumins, conhecendo a mata, a floresta.

O que chamou a atenção de vocês nesse contato com o povo Munduruku?
Ficamos alguns dias nessa Missão, depois os filhos do Tawé vieram buscá-lo. A casa dele ficava a dois dias de canoa da Missão. Ele convidou para fazer essa viagem com ele. Fomo, remamos dois dias pela floresta, foi uma viagem surpreendente. Fiquei um tempo lá, junto com a família dele. Ficamos lá muitos dias e não víamos crianças chorando. A relação dos meninos era uma coisa extraordinária. Eles andavam de mãos dadas. Ouvimos umas duas ou três vezes criancinhas chorando à noite por causa de dor de barriga, mas eles tinham um cuidado muito especial com as coisas. Por exemplo, quando a criança nasce, a mãe índias tem uma tipóia feita de casca de árvore. Na aldeia, existem duas linhagens: os filhos do Sol e os filhos da Lua. É uma forma de controle da consaguinidade, para evitar que parente muito próximos se casem. Tawé é filho do Sol, e o símbolo é o macaco prego, cuja cor dá o nome da linhagem. Filho do Sol só casa com Filha da Lua. A esposa dele se chamava Puxu, que é uma fruta que tem cor branca e define essa outra linhagem. A mãe filha do Sol usa tip[oia vermelha e quando ela é filha da Lua é branca. A mãe ficava com o bebê na tipóia o tempo todo. A criança fica encostada no seio, mama a hora que quer, tem contato as 24 horas do dia com a mãe. Sou psicólogo e na psicanálise há uma palavra que fala da qualidade da relação da mãe com a criança e chama-se maternagem. Quando a criança é bem maternada, teve uma boa maternagem, tem uma perspectiva de vida psicológica mais saudável. Mas nada se compara a isso. Hoje, as crianças raramente têm a alegria de poderem ser amamentadas. Na aldeia, até um ano de idade a criança fica "colada" na mãe pela tipóia. Quando fazem xixi ou cocô, a mãe entra com ela no rio, dá um banho, lava a tipóia. É um carinho, um amor, um cuidado.

Esse cuidado continua en outras fases da vida dos filhos?
Sim. A gente via crianças maiores. O frei que morava na Missão contava de um índio fazendo uma armadilha para caça pequena, que era toda cheia de sutilezas. O menininho dele, brincando por ali, vinha engatinhando e derrubava a armadilha. Aí ele, com a maior paciência, construía de novo. Daqui a pouco, o menino vinha, pulava no seu pescoço feito um macaquinho e derrubava a armadilha de novo. Quando foi lá pela quarta vez, o frei se indignou e perguntou se o menino não estava atrapalhando. O índio olhou surpreso e respondeu que o menino não sabia que estava atrapalhando, pois queria apenas brincar. O modo de vida deles propicia esse contato. Há uma coisa muito especial no modo de vida deles: é que eles não possuem propriedade privada de espécie alguma. Eles não têm acumulação de bens e sequer meios de armazenar os alimentos. Diariamente, eles saem para conquistar o alimento daquele dia. Pegam uma canoa e vão pescar e caçar. Iam só os homens ou as famílias. Eu queria ir, mas o Tawé dizia que eu deveria ficar na aldeia fazendo farinha. Eles saíam cedinho para isso. Era uma vida muito difícil, porque faça sol ou faça chuva, eles têm que sair, porque senão você não vai ter o que comer. Estávamos no inverno amazônico, com chuvas torrenciais. O inverno amazônico são seis meses de chuva, e mesmo assim eles têm que sair para conquistar o alimento para as famílias. Mesmo sendo uma vida difícil e pesada, eles possuem uma ternura e uma doçura que são inalcançáveis para mim. Eles caçam e pescam até obterem o suficiente para aquele dia. Depois retornam e passam o restante do dia junto com a família, brincando com as crianças, fazendo armadilhas, tecendo redes, construindo canoas, um arco e flecha, esculpindo um remo. O remo deles é uma obra de arte, uma coisa maravilhosa.

As coisas são partilhadas entre eles?
Eles vivem muito a dimensão do ser e não do ter. Tudo é de todos, e isso é uma coisa muito bonita. Chegam com o que caçaram e pescaram e colocam tudo numa mesa no meio da aldeia. Isso é muito simbólico, pois tudo pertence a todo mundo. É uma partilha que me faz lembrar os primeiros cristãos, as primeiras comunidades. Era assim que eles viviam, ou seja, se despojavam de tudo que tinham e era tudo de todos. Isso é fantástico, porque é algo da cultura milenar. É isso que se almeja, que se está buscando tanto, essa fraternidade que já é vivida pelos indígenas. Eles nem sabem que existe um mundo diferente. Isso, para eles, é a vida.

(Jornal de Opinião, nº 884 - 8 a 14 de maio de 2006)

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